Pessoas Invisíveis

Muito presente em narrativas fantásticas, o conceito de invisibilidade foi sendo ampliado, deu vida ao sobrenatural, superpoder a heróis e vilões, explicação ao inexplicável. Ou, ironicamente, mostra o que não se via, ou aquilo que não se quer ver: pessoas e objetos.

O conceito da camuflagem óptica que baseia uma tecnologia de segurança que a Toyota desenvolve há mais de 20 anos foi popularizado pela explicação do funcionamento da Capa de Invisibilidade de Harry Potter, o bruxinho camarada, que a despeito da capa mágica, tem uma visibilidade internacional que vale bilhões de dólares aos seus criadores.

E se você tivesse esse poder de se tornar invisível ou também dar essa característica a outras pessoas?

E se a visibilidade fosse o estado de exceção, a suspensão de uma existência invisível? E se você vivesse entre a visibilidade e a invisibilidade numa cidade que não nota o cidadão que a habita? E se nessa cidade, ouvir fosse o superpoder da visibilidade?

Você viveria numa cidade assim? É claro que sim. Você já vive nela.

É disso que trata este artigo: fazer da cidade onde se vive a cidade onde se quer viver pela presença, ou melhor, pelo olhar em que nela nos sentimos incluídos.

Ser visto, notado ou percebido é um presente em cidades que, a cada dia mais, tornam as pessoas invisíveis.

Não temos respostas absolutas, regras de procedimento, métodos infalíveis e vamos evitar a todo custo cair na armadilha do lugar comum, adotando um caminho que passará por:

Quem são as pessoas invisíveis

Cidadania Inteligente: escuta qualitativa, visibilidade social e gestão colaborativa.

Convívio em espaço público: o protótipo da cidade

A zona de conforto, a chamada do óbvio e o bom senso comum

Este artigo é um convite à reflexão quanto às possibilidades de mudar a cidade em que vivemos. Sem conclusões, há formas de pensarmos nesse caminho, discutirmos o que podemos fazer agora porque o futuro que a gente planeja tem que começar.

Trazemos a convergência da arte, cultura, gestão pública e experiência do usuário na consolidação dos alicerces sociais e administrativos para a construção de cidades inteligentes viáveis.

“O oposto da convivência é a violência.” 

Jorge Melguizo, Secretário de Cultura e do Desenvolvimento Social de Medellín entre 2004 e 2011

Vamos nos provocar a uma nova visão de desenvolvimento urbano?

Você já viu pessoas invisíveis? Viu.

No entender da DUXcoworkers, pessoas invisíveis são as que, voluntária ou involuntariamente, deixam de ser percebidas, seja no contexto econômico, no desenvolvimento de infraestrutura e aparatos urbanos, no acesso de tecnologias, educação, cultura e arte, ou deixam de ser consideradas no cotidiano da tomada de decisão.

 

Essa invisibilidade é dinâmica, atinge todo tipo de pessoa, tem origem e causas diferentes, assim como impactam a sociedade em diversos aspectos.

A seguir, traçamos uma rápida classificação de apoio à leitura deste artigo, sem qualquer a pretensão de esgotar o tema:

A estratégia, palavra usada por diversos contextos semânticos, tem sua origem nos conflitos militares, de se traçar os caminhos para o ato de vencer. Transportada para outros setores do relacionamento humano, a estratégia orienta todos os caminhos da razão para a decisão, alcançando o status de disciplina acadêmica no contexto de gestão.

Trazendo essa amplitude de conceito de se decidir para a lupa da invisibilidade, considerar ou não um fato, um grupo social ou um segmento de pessoas é sim um ato de estratégia.

A segmentação de perfis classifica as pessoas: o público alvo, o perfil do usuário, o contexto econômico a que se destina uma inovação, produto ou serviço e por aí tem-se a aplicação prática da invisibilidade, que também é estratégica.

Há ainda a invisibilidade da polarização de ideias, posicionamento, filosofia ou pensamentos. Um fenômeno social que pode gerar extremos, no qual a confiança ou falta dela se torna agressividade; a convicção é confundida com a teimosia ou intolerância e a argumentação das ideias dá espaço ao desmerecimento total do outro, que ganha o status de opositor.

Neste campo do anti-debate, a invisibilidade é mútua.

Separados por bolhas digitais, somos usuários de algoritmos que em troca do conforto, segurança, rapidez, eficiência, praticidade e outros valores da era digital, cedemos nossa intimidade rastreada pelos famigerados likes.

E através de nossas escolhas, somos endereçados para este ou para aquele lugar ou grupo similar digitalmente que, pouco a pouco, se torna a nossa maior fonte de referência.

Ou seja, fora da bolha, tudo é invisível.

Nem todos querem ser visíveis. Ou ser vistos.

Sim, embora muitos não acreditem, há quem não tenha uma conta no Facebook, Instagram, ou currículo no LinkedIN. Twitter? Telegram? E quantas mais páginas digitais nos farão reais?

Essa invisibilidade digital muitas vezes ocorre por falta de acesso mas também por opção.

Quem é invisível voluntariamente não quer ter sua intimidade invadida.

Já quem gostaria de ter melhores condições de acesso sente a prática da invisibilidade que também retira oportunidades.

Em um universo cada vez mais digital, o que é real, também é digital. Ou não?

A invisibilidade também pode ser fruto das classes sociais, de origem histórica que permeia as desigualdades sociais e econômicas atuais.

Embora esta questão não seja o foco deste artigo ela sempre está presente de forma explícita ou nas entrelinhas de todas as invisibilidades.

O fosso que separa grupos sociais por critérios econômicos, em geral, determina o que se vê, ou quer ser visto. Quanto mais profundas as desigualdades, maior o abismo social e maior a invisibilidade das pessoas, umas às outras.

O conceito de cidadania é conflitante por natureza com a invisibilidade.

A democracia é incompatível com a invisibilidade, entretanto, aqueles que não fazem parte das estatísticas e que sequer são considerados pela gestão pública são cidadãos invisíveis.

Aqui a invisibilidade clássica ganha palco aplicada à invisibilidade estratégica da gestão pública que contamina e causa também outras condições de invisibilidade.

A existência de pessoas invisíveis ao poder público é um obstáculo à consolidação da cidadania.

E sem ela, não há cidades inteligentes, tampouco humanas.

Não Viu? Ou viu?

Cidadania é o conjunto de direitos e deveres, civis e políticos, das pessoas na sociedade que lhes confere igualdade diante do famoso Estado Democrático de Direito.

A cidadania permeia o uso e acesso aos serviços, espaços e instrumentos públicos, seja no direito de participar da tomada de decisão do governo e no dever de fiscalizar sua gestão.

“A cidade não pode ficar sem a sensação de pertencimento.” 

Melina Alves, CEO da DUXcoworkers

É a cidadania que nos confere o título de cidadão e cidadã. Sem ela, moramos em um espaço que não nos pertence, sendo uma espécie de inquilino que se sujeita a qualquer mudança na casa, mesmo que essa piore nossas vidas. Sem a cidadania, somos invisíveis.

E pra ser visto, tem que ser ouvido.

Ouvir o que a população tem a dizer é essencial para uma administração pública eficiente, assertiva e inteligente. É através de pesquisas que a cidade conhece o seu povo, entende suas necessidades, sente suas dores e descobre o que as pessoas desejam.

Pesquisas qualitativas permanentes, realizadas por profissionais capacitados, são uma fonte de informação relevante mas ainda pouco utilizadas pela gestão pública brasileira. Por meio delas, o desenvolvimento de soluções urbanas serão espelho dos anseios do cidadão, ou pelo menos, mais aproximadas de suas necessidades.

O UX Researcher é peça fundamental desse processo por se tratar de um especialista capaz de cuidar da informação desde a sua origem, pela escuta ativa e aberta a capturar informações valiosas para a execução e desenvolvimento do projeto. A transmissão refinada dessas informações definirá o curso de atuação dos gestores, decisores e até mesmo dos demais profissionais envolvidos na atividade.

A tradução do comportamento do usuário, suas expectativas e realidades, é fundamental para dar forma e função às soluções propostas.

A relação de troca entre o usuário e a administração pública alcança praticamente todas as esferas urbanas e não apenas a concepção de serviços ou plataformas digitais.

As possibilidades são tantas quantas se pode imaginar.

Mas não há canais de interação na cidade que permitam a manifestação aberta e coordenada das pessoas que possam ser categorizadas ou traduzidas ao poder público.

A dificuldade ou falta de acesso do cidadão ao poder público, pensada como um artefato que possa compor o design urbano, dá às obras públicas roupagem estática, sem vida, perpétua em um ambiente que deve ser dinâmico e interativo por definição.

“A cidade ideal é um eterno protótipo.” 

Natalia Zapella, designer, sócia da DUXcoworkers

Se a arquitetura urbana fosse criada em hipótese e teste, de modo a projetar as necessidades da população em ambientes dinâmicos, em constante reinvenção, o ambiente urbano em que se vive mudaria com mais consistência.

Assim, não só pode-se criar um vínculo entre pessoas e as cidades, que permita a consolidação da cidadania em dimensões afetivas de pertencimento e de participação fundamentais, mas também para se construir uma cidade de fato inteligente e humana.

A infraestrutura de concreto e aço passa a ser percebida como um ambiente em movimento, livre de formas e conceitos.

Escuta qualificada, ativa e permanente, abre a perspectiva da administração colaborativa, trazendo o cidadão para o palco ou aproximando esse da tomada de decisão.

O ganho administrativo e financeiro dessa dinâmica permite que a gestão invista mais em uma iniciativa e não em outra, economizando e priorizando ações mais compatíveis às necessidades reais das pessoas.

Dessa forma, não corremos o risco de criar um novo problema a partir de um artefato imposto à cultura local, que acabe sendo percebido como alheio ou invasor do espaço público. Esta solução pode até resolver um problema mas gera outro, transformando a experiência daquele artefato urbano em outra dor.

É aplicando esse processo que uma gestão municipal eficiente pode descobrir onde, como e quando investir no município, aumentando a assertividade das suas ações, evitando o desperdício de dinheiro público, deixando um legado positivo à cidade e consolidando o exercício da cidadania como uma conquista inalienável e condição intrínseca para uma boa administração pública.

É assim que começamos a ser partes de uma cidade inteligente.

A cidade de São Paulo é exemplo da experiência da cidadania.

Com ela o espaço público é ressignificado e as pessoas cultivam novas relações com a cidade.

A manifestação organizada dos cidadãos permite que seus anseios sejam aplicados ou considerados nas decisões dos governantes. Exemplo disso é foi a volta do carnaval de rua à cidade, a transformação da Avenida Paulista e do Minhocão em espaços de lazer, cultura e prática de esportes com amigos, familiares e desconhecidos nos fins de semana.

E mais do que reclamar o uso do espaço público, o cidadão se torna visto.

“No Elevado há duas narrativas que não se veem. Polarizaram até o Minhocão.” 

José Mauro Gnaspini, Diretor de Cultura e Arte da Amigos da Arte

O Minhocão, aliás, é um caso exemplar de uma administração pública unilateral.

Inaugurado como Elevado Costa e Silva, em 1971, com o objetivo de ligar o Centro à Zona Oeste em uma via expressa, aliviando o trânsito da região, a sua construção é fator de polêmicas até os dias de hoje.

Atualmente, a discussão quanto ao seu futuro está concentrada em dois grupos que parecem não se ouvirem mais — e por consequência, se tornam invisíveis entre si.

De um lado, quem defende o desmonte do Elevado João Goulart, assim rebatizado em 2014. De outro, quem quer mantê-lo em pé, mas transformado num parque suspenso, mais ou menos como funciona hoje nos horários em que o trânsito de veículos é impedido.

“É preciso ver o invisível para termos condição de imaginar jornadas mais plurais.” 

Melina Alves, CEO da DUXcoworkers

Ninguém enxerga que podemos desmontar parte do Elevado e mantê-lo como parque em outra parte? José Mauro Gnaspini, Diretor de Cultura e Arte da Amigos da Arte, levantou essa possibilidade na última edição do UXcoffee Live. Um ponto de vista é interessante que traria um olhar híbrido para um problema plural.

A ressignificação do espaço público abre a proposta de se pensar sobre a cidade.

Ao despertar esta afetividade pelo local, a partir da temporária transformação da funcionalidade de um ou outro artefato público,o cidadão acredita ser parte de algo maior e se engaja para que aquela cidade seja construída de modo a representar parte da sua personalidade.

“Para mudar é preciso persistência.” 

Melina Alves, CEO da DUXcoworkers

A tradução de dados por pesquisadores especialistas, transmitidos à gestão pública de maneira que haja a plena compreensão do comportamento das pessoas, traz essa participação persistente tão desejada.

A “participação significativa” do cidadão na administração municipal, motivada pelo poder público através do contato constante com o cidadão (escutas qualificadas perenes) pode se tornar um hábito de uma população acostumada à Visibilidade Cidadã.

Abre-se assim, a possibilidade da gestão colaborativa se consolidar e ser agregada à cultura da cidade no longo prazo.

Ao assumir sua cidadania, a pessoa que ocupa o espaço urbano assume seu papel como parte ativa da administração que é compartilhada com o poder público, age de forma colaborativa e se sente representada pela gestão.

E a cidade, centrada nas pessoas, já será mais desejada do que aquela anterior que existia, caminhando para ser de fato uma cidade inteligente.

Embora o caminho seja longo, uma boa forma de testar esse processo são os eventos públicos.

Por atraírem uma quantidade significativa de pessoas, os eventos são as brechas ideais abertas para dar maior visibilidade às pessoas ocultas em suas bolhas digitais, invisíveis por condições econômicas ou cotidianos ignorados.

Através dessas brechas, aqueles que são diferentes participam do mesmo universo e passam a ser percebidos um para o outro.

Em eventos públicos pode-se testar e monitorar os resultados antes da implementação de soluções definitivas que mudarão o artefato urbano.

E as pessoas contribuirão de forma mais espontânea pois podem ser provocadas à isso. Afinal, a invisibilidade nesse contexto já não será tão surda.

Podemos ter uma uma nova ideia de cidade através das percepções que ressignificam o pertencimento, interação, compartilhamento, vivência e outras respostas à integração com a cidade e pessoas diferentes, que até então eram invisíveis.

Um evento público realizado em espaço aberto, acessível e plural, livre de abadás, cordões de isolamento e exclusividades, convida diferentes e diversas pessoas a se encontrarem.

No espaço público em efêmera e constante ebulição social, cultural, artística, urbana e existencial, nada se bloqueia, não se pode deletar um comentário ou excluir seguidores.

De forma consciente ou não, as pessoas que ocupam os espaços públicos são afetadas em sua percepção das coisas, do espaço, do tempo, das pessoas e de si mesmas.

Esses eventos, acontecimentos temporais, criam um estado de exceção na cidade que constrói, no mesmo espaço de antes, um ambiente absolutamente diferente pela presença da arte, da cultura e das próprias pessoas propensas a compartilhar o espaço com quem não conhecia e, a rigor, não via.

Temos aí um belo protótipo da cidade, que pode ser aprimorado por designers, gestores públicos e seus diversos pares, e cidadãos mais presentes.

Da mesma forma, o teste pode ser realizado durante o evento: validação de sistemas de segurança, atendimento, gerenciamento de espaço público de transição (meio fio, passarelas), espaços de lazer/descanso (praças, espaços de convivência), artefatos urbanos tecnológicos, soluções para mobilidade, poluição sonora, e outras.

Quando buscamos a construção de uma cidade diferente pela inteligência e humanidade, pensamos que todos os seus cidadãos serão beneficiados por essa evolução.

A ideia é que uma cidade só é inteligente e humana se for inteligente e humana para todos. Todos devem ser vistos e considerados.

A ideia é encontrar um senso comum sobre qual se estabelecerá a evolução urbana.

As pessoas são diferentes.

Muito.

Mais do que podemos imaginar.

Diante dificuldade de se encontrar um senso comum que represente toda a sociedade, a solução é que se nivele por baixo.

Essa desconfiança do bom senso coletivo torna as cidades cada vez mais impermeáveis e as pessoas mais invisíveis. Quanto menos confiamos, mais restringimos.

“Precisamos correr atrás da correções da cidadania sem desconfiar do outro. Sem temê-lo.” 

Melina Alves, CEO da DUXcoworkers

Voltamos ao exemplo do evento público.

Em eventos pagos de grande porte no Brasil é praxe revistar as pessoas.

Essa desconfiança é comum na postura da administração pública.

Ao se planejar um evento, a avaliação do público frequentador pode considerar que existem maiores ou menores dificuldades de equalizar os aspectos de convivência social, o que pode trazer a adoção de medidas mais ou menos restritivas.

Se o evento público é um ensaio do que a cidade pode vir a se tornar em um futuro próximo, o gestor observa esse momento para validar medidas que possam ser utilizadas permanentemente na cidade.

Se há confiança no público, há tendência de maior desenvolvimento, inovação e liberdade. Já se há desconfiança, as censuras, o controle e as restrições serão maiores.

Mas qual outra maneira de se estabelecer um senso comum diante de tanta heterogeneidade?

Pensemos:

Em geral, toda casa é construída com ao menos um banheiro. Não importa que tipo de pessoa será o futuro proprietário do imóvel, mas banheiro vai ter.

E todo mundo sabe o motivo. É óbvio.

Óbvio?

Se é tão óbvio assim, por que nas nossas cidades é quase uma tarefa impossível encontrar banheiros públicos?

Se o óbvio fosse tão perceptível, haveriam banheiros disponíveis para a população em todas as cidades brasileiras e em condições de higiene esperadas pelo senso comum.

O óbvio pode ser muitas coisas, menos 100%. Em toda obviedade, há sempre um “quase”.

E o quê para uns pode ser óbvio é nesse lugar que as mudanças não acontecem.

O óbvio nos priva de experimentações, da inovação e nivela os anseios sociais por baixo.

“O essencial é invisível aos olhos.” 

Antoine de Saint-Exupéry

A busca pelo bom senso comum é olhar além do óbvio.

Ouvir o que poderia estar claro com escuta ativa, atenta para extrair o principal contexto de diferentes perspectivas.

É tornar visível o que antes era restrito ao senso comum para tratar com bom senso tantas realidades que permeiam, além da invisibilidade, a construção e evolução das cidades: a começar pelas pessoas.

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