O isolamento social imposto desde o meio de março (no estado de São Paulo, desde o dia 17 do referido mês) tem gerado transformações sociais, comportamentais, de consumo e trabalho. Sociedade e empresas de todos os portes e segmentos têm experimentado uma realidade que só parecia existir no filmes de ficção científica.
Hoje, no momento em que escrevemos esse artigo, estamos há 57 dias confinados em nossas casas com a quarentena prorrogada até 31 de maio. Temos 46% de adesão popular à medida no estado de São Paulo, seu pior índice.
Olhando de fora, não é difícil criticar quem não adere à medida preventiva. Vivemos um momento em que o número de óbitos aumenta 7% e o de contagiados 5% a cada dois dias. Diante tal quadro, como alguém com um mínimo de responsabilidade pode pensar em furar o confinamento?
Olhando de longe, não dá pra saber. Culpar essa parcela da população pela falta de empatia, responsabilidade e comprometimento com a saúde pública é tomar uma posição que pode não representar a realidade.
Daqui de fora, a distância não nos permite ir muito além do “acho que é assim”. E sabemos que o “achômetro” não é um bom guia para tirarmos conclusões seguras que possam embasar um raciocínio, uma lógica de desenvolvimento, seja em um projeto, seja em um debate de ideias.
Para construirmos um alicerce sólido e confiável devemos ouvir as pessoas.
Precisamos estar próximas ao usuário para entender a jornada que têm vivido nessa fase crítica.
Fique em casa
A realização de pesquisas tem dividido opiniões de UX Researchers e empresas. Se a importância da investigação junto ao usuário é praticamente uma unanimidade no que tange à sua importância no desenvolvimento e aprimoramento de produtos e serviços, sua realização remota levanta dúvidas, principalmente quanto à sua eficiência.
Uma dúvida que não compartilhamos.
Sabemos que a melhor forma de desenhar uma experiência de inovação baseada no comportamento é a presencial. Há nas entrelinhas de uma pesquisa, o estabelecimento tácito de uma relação de empatia e confiança entre persona e entrevistador. A imersão na realidade dos usuários é melhor forma de atingirmos esse nível de proximidade.
Mas atualmente este formato está fora de questão.
Assim, temos uma escolha a ser feita: deixar as pesquisas de lado e interromper projetos que estavam em andamento ou adiar o início de outros por tempo indeterminado, ou seguir em frente, lançando um olhar estratégico sobre esses trabalhos trazendo o novo cenário social e mercadológico como parâmetro para definir quais projetos devem ser interrompidos, quais devem seguir e quais devem ser iniciados.
Foco no usuário
No universo do UX, a pesquisa remota não é uma novidade. Muito pelo contrário: o ambiente doméstico é aquele em que o usuário se sente mais à vontade para responder perguntas e expor suas percepções sobre o tema investigado. Os laboratórios de pesquisa qualitativa se tornaram uma opção por uma necessidade do cliente e assim, pouco a pouco, a investigação à distância foi ficando de lado, a despeito de ser parte importante no processo.
Com o isolamento e a escalada das atividades remotas, não estamos mudando a forma de pesquisar e sim promovendo o resgaste da metodologia indicada para a sua execução.
Nesse aspecto, a quarentena se tornou um aliado do UX Research.
“Muitas vezes nesse período, a pessoa sai agradecida da entrevista por ter tido a oportunidade de falar sobre um tema que não falaria com amigos ou parentes”
Melina Alves
Por isso, a realização remota de pesquisas, seja em parte ou integralmente, sempre foi uma possibilidade para a DUXcoworkers. Há muito tempo estamos familiarizadas com sua utilização em todas as etapas e testes, atentas à facilitação do uso da ferramenta tanto pelo entrevistado quanto pelo pesquisador.
Há também a preocupação quanto à escolha da ferramenta que deve levar em conta o objetivo da pesquisa e quem é a persona que investigamos.
Além da relação do UX research como a tecnologia, o isolamento tem reforçado duas tendências que a cada dia está mais integrada à vida das pessoas..
A tecnologia e a colaboração.
O mundo pelas telas
Um dia antes da oficialização do isolamento, em 16 de março, nós distribuímos uma apostila básica de informática para grupos de pesquisa que iríamos trabalhar naquela semana e na próxima. O aumento substancial do número de casos de covid-19 no mundo, dava-nos um sinal de que em breve, como em inúmeros outros países, sofreríamos medidas restritivas contra a contaminação.
Ao produzir o material de apoio, sabíamos que essas pessoas tinham dificuldade em utilizar aplicativos ou programas que fugissem do design de usabilidade ao qual estavam acostumados. Para realizar as entrevistas à distância, eles teriam que saber se virar sozinhos em programas aos quais não estão habituados. Fizemos então um roteiro de usabilidade e funcionamento salpicado de dicas gerais de informática. Foi um sucesso.
Três dias depois, um grupo diferente de pessoas que seria entrevistado, com o mesmo perfil tecnológico do anterior, recebeu esse mesmo material pedagógico. Porém, para este grupo, a apostila já era básica demais.
Três dias.
Mesmo sem valor estatístico, o evento impressiona pela rapidez com que evolução do aprendizado digital se apresentou, em uma taxa de desenvolvimento muito acima da média.
Por quê?
Pela necessidade. Desde que nossa apostila foi distribuída, há um aumento na busca pela internet bastante significativo que tem levado o usuário a descobrir em seu celular, mais que redes sociais.
A possibilidade do aprendizado oferecido por instituições de ensino como USP, FGV, Harvard, Yale, Stanford entre muitas outras, abrem novas perspectivas para a conexão à distância. Há uma oferta real de desenvolvimento pessoal e na rede, a despeito da crise pandêmica que nos cerca.
Infelizmente, boa parte da população não está inclusa nesse cenário e em breve, discutiremos a questão sob este ponto de vista.
Já é possível perceber a evolução de aplicativos que já conhecemos, movimentada pela disputa entre as desenvolvedoras.
Trocando em miúdos, o ambiente digital tem se tornado tão real e cotidiano, que não apresenta obstáculos à realização de pesquisas do usuário, seja pela imersão deste no assunto, seja pela usabilidade da ferramenta digital de comunicação utilizada no processo.
Colaboração é a bola da vez
Há algum tempo, o ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, resumiu qual o comportamento que devemos adotar diante a crise de saúde que vivemos: “Está vendo como todo mundo é essencial em saúde nesse momento? Às vezes, um pequeno gesto como limpar esse microfone, como ele fez, se torna o gesto mais essencial numa reunião como essa.”
A colaboração é essencial nesse momento. E a vemos presente a cada dia, seja nas iniciativas tomadas por grandes empresas, seja nas pequenas atitudes do cidadão como o simples ato de ficar em casa ou usar máscaras quando precisam sair. É se dispor a fazer comprar aos mais velhos, pagar as contas de serviços que não utilizam devido o isolamento (faxineiras, academias, etc).
“Para derrotar o vírus, precisamos compartilhar informações globalmente. Essa é a grande vantagem dos humanos sobre os vírus.”
Yuval Noah Harari
As produtoras de conteúdo, cultura e arte também reverberam esse movimento, abrindo mão da “bilheteria” para que as pessoas tenham acesso a um pouco de lazer, diversão e dos clubes de futebol que colocaram seus estádios e centros de treinamento a disposição para serem usados. Há empresas de fact checking de todo o mundo checando sem qualquer tipo de cobrança a veracidade das informações sobre o coronavírus que circulam na rede.
Terapeutas oferecem tratamento online gratuito para quem está muito abalado enquanto uma rede de academias de ginástica oferece um tutorial para que as pessoas sigam se exercitando em casa, durante o período de confinamento.
O poder público também deu sua contribuição cooperativa em inúmeros casos, com a Secretaria de Justiça, Família e Trabalho do Paraná que organizou um mutirão digital para ajudar a recolocar no mercado profissionais sem emprego. Já o Ministério da Saúde desenvolveu um aplicativo que auxilia na prevenção do vírus. Até os Palestinos e os Israelenses deixaram de lado seu histórico conflito para combaterem, lado a lado, a pandemia do COVID-19.
Afinal, agora todos têm o mesmo inimigo.
“A colaboração começa com a empatia”
Sophie McAulay
O exemplo dado pela união da Palestina com Israel é um dos caminhos que podemos adotar quando o COVID-19 estiver liquidado. Em um artigo escrito no Financial Times, Yuval Noah Harari nos provoca a escolher entre quatro opções de qual o mundo queremos no pós-coronavírus. Dentre as opções, temos a solidariedade global:
“Um coronavírus na China e um coronavírus nos EUA não podem trocar dicas sobre como infectar humanos. Mas a China pode ensinar aos EUA muitas lições valiosas sobre o coronavírus e como lidar com isso.”
UXcoffee virtual
Recentemente, realizamos um UXcoffee virtual com a presenla de coworkers como parte das comemorações dos 10 anos da DUXcoworkers. E a conversa, como era de se esperar, acabou passando por esse assunto.
O tema surgiu quando Andreia Oliveira, pesquisadora júnior na DUXcoworkers, fez uma brincadeira quanto à vida em meio às teleconferências e lives, considerando-as uma oportunidade para falarmos menos e ouvirmos mais: “é preciso ouvir o outro para poder participar”. Foi o link perfeito para Tatiana Tosi, Expert in Business Intelligence in Social Media e nossa coworker, trazer a pesquisa de UX para a conversa a partir da necessidade de escuta.
“Pela primeira vez estamos fazendo um exercio global de escuta.”
Tatiana Tosi
Tati acredita que a pandemia acaba por nos oferecer a oportunidade de aprendermos a ouvir mais, estar mais atentas ao que o próximo diz, exercitar nossa capacidade em ser ouvintes. Ela ainda ressaltou que, em sua opinião, as pesquisas remotoas podem estar sendo invasivas, na medida em que “invadem” os domícilios das pessoas através da tecnologia.
Mas aqui, conforme a Melina ponderou, há de se fazer uma diferenciação entre as pesquisas de UX e as que têm um modelo mais tradicional, que não tratem diretamente da experiência do usuário. Nestas,Tati tem toda a razão ao colocar a persona como alguém cuja casa é “invadida” por pesquisadores.
Só que a história muda quando se trata de UX. A própria literatura técnica sobre o tema e o histórico de pesquisas em labs remotos, principalmente no que tange aos testes de usabilidade, pedem um ambiente em que o usuário esteja o mais confortável possível, como sua residência por exemplo. Com o tempo, os laboratórios de pesquisa qualitativa foram sendo adaptados às necessidades do cliente.
Melina ainda cita o fato de os aplicativos de pesquisa de UX serem desenvolvidos para favorecer essa ambientação, pois a pesquisa de usabilidade está atrelada ao cenário de uso, que por sua vez se aproxima do ambiente residencial das pessoas.
Carla Rollo, Qualitative Researcher e coworker na DUXcoworkers, levantou a possibilidade das personas estarem em um momento psicológico desfavorável no que tange responder uma pesquisa. Se o dinheiro oferecido pela participação nunca foi tão bem vindo, o risco dos problemas da pandemia afetarem os resultados devem ser levados em conta.
De fato, não há como negar que o mundo está diferente. Se assim é, as pesquisas devem acompnahar essas mudanças.
“O perfil dos entrevistados têm se tornado mais jovem, um público que sempre foi difícil de entrevistar devido ao deslocamento até o local da pesquisa em horário comercial.”
Ana Lucia Martinelli
Melina Alves ressaltou que a elaboração da investigação na DUXcoworkers leva em conta o novo contexto. Não há como ser diferente. Os roteiros incluem o antes da pandemia e as perspectivas do que teremos no mundo pós-covid, principalmente em testes de conceito, entrevistas em profundidade e etapas de cocriação.
A percepção da fundadora da DUXcoworkers é a de que as pessoas se envolvem mais com a pesquisa pois há a vontade de colaborar e, principalmente, de falar sobre um assunto que pede sua opinião e dificilmente ela teria outra oportunidade de expressá-la.
Ana Lucia Martinelli, coworker e UX Researcher, compartilha da mesma ideia a partir de suas última experiências, nas quais notou um maior engajamento das personas que em certos momentos, oferecem informações que talvez não fossem acessíveis em um procedimento presencial. As entrevistas têm sido mais longas devido ao maior engajamento do usuário, além da maior facilidade para recrutamento de um público mais jovem (entre 20 e 30 anos).
Outras ações realizadas pela DUXcoworkers apontam para esta predispósição à pesquisa. No episódio Quarentena sim, isolamento não de nosso podcast, tivemos um número recorde de participação de ouvintes que atingiu mais de 90% dos chamados (contra o máximo de 10% de respostas que tínhamos antes do isolamento).
E quando ainda pensávamos que pandemia era coisa de cinema, o painel itinerante com a pesquisa O Futuro do Trabalho sempre contou com a participação das pessoas de forma intensa e voluntária além de apontar para a colaboração como um aspecto fundamental para trabalho no futuro.
Pesquisar é sempre preciso
Vivemos uma nova experiência. Jamais havíamos pensado em passar por uma período como o atual. Não é porque estamos isolados ou em meio uma situação delicada que as pesquiasas de UX devem ser suspensas.
Muito, mas muito pelo contrário.
É agora que elas devem se intensificar. Porque elas não só vão nos oferecer insumos para projetos que sirvam aos usuários da melhor forma possível, como lhes abre um canal de participação que reforça um ponto cuja importância tem sido reforçada a cada dia: a colaboração.
Em tempo: agradecemos muito aos coworkers que participaram do UXcoffee virtual: Ana Lucia Martinelli, Ana Gabriela Galante, Cristina Luckner, Manoela Marandino, Marcela Ponce de Leon, Samuel Corni, Patrícia Pousa, Tatiana Tosi, Thiago Rocha, Tiemi Yamashita e Thais Martinho.
Além de Mariana Moreno, Melina Alves e Poliana Alves