Para Alessandra Madeira Gomes, engenheira mecânica, mãe de três meninas, nada. Esta também foi a resposta de Tereza Xavier, atriz que trocou a vida na cidade grande pelo sossego de um sítio no interior do estado de São Paulo.
Alessandra, por sua vez, fez o movimento inverso: saiu de São José dos Campos, no Vale do Paraíba, também em São Paulo, para morar na capital. Movimentos inversos e respostas iguais que espelham os problemas urbanos enfrentados pelas nossas cidades, principalmente nas capitais, desde que Brasil se tornou um país urbano, há 70 anos.
Mazelas sociais que, a cada ano, faz das cidades um obstáculo à qualidade de vida de toda a população. Os problemas que se limitavam à periferia, fora do alcance da visão de quem mora da região central das cidades, impactam o seu dia a dia com cada vez mais força.
A cidade dos carros
Em maio de 2017, uma matéria da Revista Época apontava que 88% das vias públicas de São Paulo eram ocupadas por carros que transportavam 30% de sua população e liberavam 73% dos gases de efeito estufa da capital. Em 2018, análises do INRIX mostraram que essas pessoas desperdiçaram 154 horas por ano dentro de um carro. dentro de um dos 5 milhões e 800 mil automóveis que circulam na cidade, a uma impressionante velocidade média de 16km/h. Neste mesmo ano, a cidade registrou o maior congestionamento de sua história com 340 km de lentidão.
O trânsito foi o que nossos entrevistados menos sentem falta da cidade. Mas curiosamente, as análises de mercado apontavam que 2020 seria o quinto ano consecutivo em que as vendas automotivas aumentam, a despeito do absurdo índice de mortalidade que são responsáveis: segundo a ONU, 3700 pessoas por dia morrem no trânsito. São 1 milhão 350 mil e 500 óbitos por ano. Para efeito de comparação de choque, A Guerra da Síria que dura 9 anos, registrou 384 mil mortos até março deste ano. Por outro lado, a quantidade de ciclistas tem crescido nos últimos anos, refletindo que as magrelas deixaram de ser usadas apenas para o lazer, tornando-se um meio de transporte.
Service design nas cidades
Há alguns anos, muita coisa se fez para melhorar o transporte público. Faixa exclusiva de ônibus, integração de sistemas de transporte, ampliação das linhas de metrô são alguns exemplos. Mas essa melhora não foi acompanhada pela qualidade do serviço e nas formas de interação e usabilidade disponíveis ao usuário.
Tudo na cidade deve refletir a inclusão social e o pertencimento das pessoas à cidade como um todo.
São Paulo ainda conta com muitos pontos de ônibus inadequados que não possuem qualquer infraestrutura para informar o cidadão dos itinerários ou abrigá-lo das intempéries climáticas. Um quadro que mostra o quanto as prefeituras precisam de equipes de UX em seus quadros funcionais.
Service design “é uma visão holística de como um serviço é entregue. É uma abordagem de pesquisa centrada no ser humano para descobrir como todas as pessoas e todos os serviços se encaixam”. A definição é de Ariel Kennan, service designer que trabalhou na Apple quando suas lojas e lançamentos se transformaram numa referência para todo o mercado, Há alguns anos, ela foi contratada pela prefeitura de Nova York para melhorar os serviços que prestam aos seus habitantes.
A experiência do usuário do serviço público é estratégica para uma cidade inteligente.
A satisfação do cidadão é bom começo para se estabelecer uma relação de confiança que, por sua vez, pode desencadear um sentimento de parceria entre pessoas e governo. E tudo isso pode começar com a eliminação das filas.
Mais que o sabor do cardápio
Os restaurantes foram um dos aspectos que nossos entrevistados mais sentem falta, em mais uma amostra do quanto a experiência do usuário é importante no consumo de serviços ou produtos. Ao escolher um restaurante, o sabor da comida não é nosso único critério de escolha.
O ambiente, as pessoas frequentadoras do estabelecimento, o conforto, a decoração, o clima do lugar, atendimento são fatores que nos leva a optar por um restaurante que esteja mais longe, que seja mais caro, que tenha um cardápio menos saboroso do que o do concorrente que descartamos, mesmo conhecendo seus pratos.
Entregando uma nova experiência
Quando pedimos comida em casa, toda essa experiência se perde. Iniciativas do serviço de delivery que envolvem o serviço de fast food mostram que essa percepção tem sido entendida.
O Wong, um restaurante no centro de Londres, faz uma sessão no Zoom para um grupo de clientes que paga os olhos da cara para acompanhar o renomado mestre cuca Andrew Wong no preparo de seus pedidos enquanto conversam. Um novo sistema de delivery food fornece a receita e os alimentos crus e higienizados para que o próprio cliente prepare o prato, buscando satisfazer um público que gosta de cozinhar.
Todo esse movimento no serviço de delivery acontece porque foi percebido que ser uma ponte entre a cozinha e a casa de quem come não dá futuro pra ninguém. O poder público também deve se preocupar em oferecer uma experiência e não apenas um serviço ao cidadão.
Antes tarde do que nunca
Na década de 1950, enquanto a população urbana brasileira ultrapassava a rural, Jane Jacobs defendia Nova York do agressivo urbanismo liderado pelo engenheiro Robert Moses, responsável pelo planejamento urbano da cidade por mais de 30 anos. Nesta época, Jacob considerava a calçada como uma instituição social fundamental para a formação da cidadania e para garantir a segurança das pessoas.
Hoje, o meio fio finalmente ganha a importância que merece.
O Smart Cities Collaborative é um programa criado em 2017 pela Transportation for America que integra cidades e oferece apoio a projetos de mobilidade. A partir desta iniciativa, as cidades de Boston, Minneapolis, e Bellevue estão desenvolvendo projetos piloto de gerenciamento de calçadas.
A ocupação do espaço público pelo cidadão gera o sentimento de que ele pertence aquele lugar. Este pode ser um ponto de partida para evoluirmos nossas cidades. Como a calçada, parques, praças, museus e bibliotecas são instituições importantíssimas para que as pessoas cuidem de suas cidades.
Mas é importante perceber o que os cerca pois a degradação do seu entorno o contamina e vice versa, condenando a localidade a ser apenas uma rota de passagem para o cidadão.
É preciso que as pessoas ocupem o espaço público em um processo dinâmico, cidadãos de todas as idades, gêneros, raças e classes socioeconômicas convivem, interagem, articulam-se em meio a encontros, experiências e vivências. Que desenvolvam um sentimento de afeto pelos lugares de convívio público.
Forma-se então a construção social do espaço e a espacial da sociabilidade.
Cidadão, empresas e poder público
As soluções para as cidades dependem do trabalho coletivo de três inteligência centrais:a da sociedade, do poder público e da iniciativa privada. A gestão participativa, embasada na transparência, e parcerias público privada devem estar focadas na construção de uma cidade inteligente que se for realmente inteligente, será inclusiva.
Os grandes conglomerados comerciais que hoje não passam de uma enorme construção num terreno, devem fazer parte da rua, da calçada, do espaço público. Ao se se cercarem de muros, cercas eletrificadas, seguranças e crachás, restringindo a circulação da maioria da população.
Condições básicas de inteligência urbana
Mas nada será possível se não tivermos saúde e educação. Sem saúde não se aprende e sem o aprendizado estamos a mercê de aventureiros, exploradores e tão bem sacados como vazios.
Sem a sustentação da saúde e da educação, seremos eternamente o país do futuro, só que de um futuro que não chega e nem vai chegar porque não o estamos construindo no presente.
Olhar além do umbigo para enxergarmos um novo normal
Tereza Xavier sente falta de algumas coisas da cidade grande. Coisas simples, como um serviço de delivery ou uma internet que funcione direito. Também sente saudade dos amigos e familiares. Mas ela tem consciência de que conquistas exigem sacrifícios. E Tereza tem certeza de que o que lhe faz falta hoje, é parte do processo de mudança.
Alessandra teme o fim do isolamento e a volta de sua rotina estafante na cidade grande. O trânsito, a preocupação com as filhas pré-adolescentes que começam a querer botar as asinhas de fora a atormentam diariamente.
Mas um dia, a cidade vai voltar ao normal. E ela torce para que seja um novo normal. Mas não basta torcer. É preciso arregaçar as mangas e lutar pela cidade que sempre quisemos viver. Uma cidade que nos seja tão confortável, segura e amada como nossos próprios lares.